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Vão

  Desci as escadas correndo, deixando para trás alguns medos e poucos sorrisos. Mas antes que chegasse, as portas do vagão se fecharam. Um pouco dramático, o vagão partiu sem hesitar. Deixou um vazio entre tantas pessoas solitárias. Um vão, um vale, como um rio, bastante geográfico. E em cada margem, erguiam-se pessoas exaustas, como árvores. A floresta era densa e não havia espaços vazios além do vão. E onde estava o próximo vagão? O vazio continuava a preencher a visão. Foi quando meu olhar recaiu sobre além do vale. E não só vi a outra margem, como prestei atenção. Do outro lado do vão deixado pelo vagão, entre tantas pessoas solitárias, uma delas em específica me chamou a atenção. Os cabelos encaracolados, castanhos e rebeldes. O olhar perdido, longe do celular. Uma ovelha desgarrada entre tantas ovelhas conduzidas pelos pastores digitais. E com os cabelos encaracolados – como uma ovelha – seus olhos encontraram os meus. Olhei para o chão, foi o meu primeiro reflexo. E três e

Cartas para Duda (VIII)

Duda, Você já sentiu tudo tão grande, que fosse transbordar? Tudo tão imenso e plano. As pessoas, os relevos, a terra, a política. O plano dos políticos para a educação. O plano de vida com emprego estável, aposentadoria e toda uma descendência. São só planos, deveria ser fácil transbordar, não? Então, por que o amor não transborda, Duda? Quem sabe um dia seja esse o plano. Beijos esféricos, Sempre seu.

Cartas para Duda (VII)

Duda, Antes, eu não entendia como o vocalista podia cantar tão intensamente sobre seus amores, usando metáforas de reis e coroas, de túmulos e flores, de cânceres que não paravam de crescer. Nem como o romancista associava lembranças do coração ao aroma das amêndoas ou às misteriosas borboletas amarelas. Do alto de suas solidões, eles evocavam tempos em que não estiveram sós. E descreviam imagens tão poderosas, como se as vissem mesmo de olhos fechados. Há quem não entenda, Duda. Há quem nunca vá entender, por dificuldades de sair de si ou outras fatalidades diversas. Mas há quem entendeu inesperadamente, num estalo fortuito, no limiar entre o apagar das luzes e o adormecer, ou numa dor tão avassaladora e inexplicável quanto a morte. De uma forma ou de outra, é real. Uma realidade nem sempre acessível, mas forte, como outras realidades que podemos conhecer. Só me resta ser grato por te ter conhecido, Duda. Com amor, Sempre seu.

Cartas para Duda (VI)

 Duda, Sei que me calo às vezes, e calado vou ficando. Como naqueles três dias e três noites de carnaval. Mas é por não saber escolher as palavras. Ou canções. É o medo das palavras-flechas, que ferem os alvos, como te feri tantas vezes. Minhas frases sempre caminhavam na tênue linha entre a lapidação e a lápide. Nestes momentos de remorso, olho pela janela e vejo o pequeno pedaço de céu azul que me é acessível. E vejo nas asas dos pássaros e nas nuvens morosas, algo de amoroso, livre e pleno, que não espera nossas frases para existir. Ou resistir. O ciclo da vida pode até ser um alvo das nossas frases de política e capitalismo, mas não das nossas frases de amor, Duda. Ou será que há um pouco de amor na política, no capitalismo, na pandemia? Com amor ou ódio, assim segue a humanidade. Muito se sustenta com silêncios. São as pausas semibreves que também compõem canções. Beijos silenciosos, Sempre seu.

Paenior (I)

Quando me relataram o acontecido, não pude acreditar. Até ontem impossível, hoje um grande soco na cara. Meu amigo, você não tem mais o amor da sua vida, seu povo te envergonha, o trabalho não vai bem. E você insiste em viver. Um pouco abstrato, ali na lateral, na janela lateral, lá fora um temporal, lá dentro os homens sórdidos. O poeta disse que talvez José quisesse morrer no mar. Mas em Paenior não há mar, apenas dor. Um rio seria tão poético quanto um mar? Acho que podemos completar tudo o que faltar com verbos enfáticos. Isso compensaria talvez a ausência de mar? Isso seria talvez uma forma de amar? Amar as palavras, não o amor da sua vida. Que se não existe agora, nunca existiu. Ou sempre hesitou? Está bem, vou ali, deixe-me ir, volto já. * Texto escrito no primeiro ano de governo Bolsonaro. Que este ano seja o ano de voltar.

O fim do mundo

Este texto foi originalmente escrito em 2011. Aqui está, com leves modificações. –  O MUNDO VAI ACABAR!  – ouviu-se uma voz desesperada vinda da rua. Um jovem triste compartilhava da conclusão, mas não do desespero. Sozinho, na sala de seu apartamento, ao som de  rocks  antigos e melancólicos, balançava pra lá e pra cá um copo de vinho tinto barato. Sem taça, sem nacionalidade, sem séculos de envelhecimento. Lembrava de tempos em que estivera acompanhado. Bons tempos, boas companhias. Se acreditava no amor? "Claro", tinha vivido muitas das alegrias e decepções do amor. Se um dia encontraria a alma gêmea, para todo o resto da vida? “Tomara”, repetia três vezes, por superstição. E teria filhos. Um casal, de preferência. Ambos os filhos jogariam xadrez, um deles tocaria violoncelo e o outro leria  Dom Casmurro  aos onze. Teriam uma casa, nem grande, nem pequena: suficiente. Mas seriam razoavelmente ricos, porque todo aquele trabalho compensaria. Contudo, as ilus

Cartas para Duda (V)

Duda, Já há algumas luas não te escrevo, será que o mar reparou? Acho que eu oscilava entre o receio e a procrastinação. A vida real, que nos despeja obrigações, teses e boletos, abreviava meus sonhos com você. Mas não impedia pequenas doses de ócio, que me proporcionaram algumas inspirações apreciáveis. Uma noite dessas, o luar me fez ver com mais clareza. E enxerguei um dos componentes da fórmula da felicidade. É claro que você sempre foi uma constante. Mas identifiquei naquela noite um propósito que me faltava. Uma variável que passava pela minha ciência, pela minha arte e pela minha nação. E só então entendi que todos esses elementos eram a mesma coisa, indissociável. Isso é uma falha tão humana, Duda. Demasiadamente humana: dar nomes diferentes para a mesma coisa. E assim achamos que não vamos precisar, algum dia, lidar com aquela complexidade. Doce ilusão. A Lua ria de mim e do tempo que demorei a entender aquela premissa tão lógica e irônica. Por mais que você se distancie de mi